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Ana Zabotti

Espaços Públicos e Identidade Urbana


A arquitetura típica, a diversidade de usos, o contato com o rio e a grande oferta de espaços de estar, fazem da Ribeira do Rio Douro um dos espaços públicos mais frequentados da cidade do Porto.

As cidades são a materialização da capacidade do homem de produzir ambientes que lhe sejam favoráveis. Elas vêm se consolidando como o habitat “natural”, construído pelo homem e para o homem, e estima-se que até 2050 mais de 70% da população humana viverá no meio urbano e não mais no meio rural. O modo como é construída e, principalmente, o modo como a cidade é apropriada, é reflexo da sociedade em que está inserida e das possibilidades que lhe são dadas a partir das características de seu espaço urbano.

A sociedade contemporânea ainda herda a rotina de prazos, horários e intensa carga de trabalho da era industrial, essa herança nos traz uma rotina automatizada no espaço urbano. Sequer prestamos atenção no caminho que fazemos de casa para o trabalho, simplesmente somos levados por nossos pés, que já sabem o rumo certo. Essa caminhada, que poderia ser rica em observações do nosso entorno, relações com o próximo e descobertas, é muitas vezes um caminho vazio, por falta de espaços adequados.


"Inicialmente nós moldamos as cidades, depois elas nos moldam."

-Jan Gehl


Os espaços públicos são um tema recorrente aqui no nosso blog, mas nunca explicamos a base do assunto, o que exatamente são estes espaços e porque os consideramos tão importantes para as cidades, não é? Com esse texto procuramos esclarecer algumas dessas questões para que assim você enxergue todo o potencial da sua cidade e porque é fundamental que estes espaços sejam mantidos e cuidados, tanto pelo poder público quanto por toda a população. Em termos gerais, espaços públicos são áreas oferecidas pela cidade, com infraestrutura e manutenção públicas, acesso irrestrito e voltadas para o lazer, descanso, deslocamento, encontros e formação cultural de uma população. Proporcionam o convívio diverso de pessoas e ensinam questões básicas de convivência, compartilhamento, cuidado com o próximo, com a natureza, com a cidade e os bens comuns.

Estes lugares refletem e influenciam a identidade de uma cidade, as relações entre as pessoas, a sua cultura e costumes. Como disse Jan Gehl "Inicialmente nós moldamos as cidades, depois elas nos moldam. Assim, quanto mais humano for o espaço urbano que produzirmos, mais valorizada nossa dimensão urbana estará. Uma cidade de pessoas para pessoas". As praças, parques e ruas de uma cidade devem ser pensados para aquela população específica, considerando o clima e os costumes locais. Os espaços públicos tem papel fundamental na formação e manutenção da identidade cultural de um povo.


Exemplo de espaço público adaptado ao clima, as 'Paris Plages' são praias artificiais instaladas às margens do Rio Sena durante o verão para que os parisienses aproveitem o calor.


As cidades antigas possuíam uma relação entre espaços públicos e privados muito melhor do que temos hoje. Como os deslocamentos davam-se a pé, as distâncias eram curtas, as vias menores, os encontros mais frequentes. Os espaços públicos eram muito mais ricos, pois era neles que se davam as relações fundamentais, como a compra de alimentos nas feiras e mercados ao ar livre. A modernização das cidades afastou as pessoas, com vias cada vez mais largas e edificações cercadas por muros e voltadas para si mesmas, sem relação com a rua. Jane Jacobs já previa, em 1961, que o aumento drástico no tráfego de automóveis e a ideologia urbanística do modernismo, que setoriza as funções da cidade e dá autonomia a edifícios individuais, acabaria com o espaço urbano e a vitalidade das cidades.

Diferente do que se imagina popularmente, os muros altos e as pessoas trancadas em suas casas são o que torna as cidades cada vez mais perigosas, e não o contrário. O conceito que chamamos de "olhos da rua" - que nada mais é do que a relação de proximidade entre as edificações e os espaços públicos, de modo que eles vejam e sejam vistos - são fundamentais para que as pessoas sintam-se seguras nas ruas e, consequentemente, fundamentais para a vitalidade das mesmas, pois espaços inseguros não são utilizados e tornam-se áreas abandonadas da cidade. Afinal percebe-se que existe uma relação de interdependência entre a quantidade de muros, a vitalidade dos espaços e a qualidade dos mesmos.

A Piazza del Campo, em Siena, está entre os principais locais de encontro da cidade há mais de setecentos anos.


Fica claro aqui que o principal impedimento à utilização dos espaços públicos atualmente é a falta de segurança. Seja pelo esvaziamento de pessoas na rua ou pelo excesso de carros, nossas cidades não oferecem segurança para seus cidadãos, que cada vez mais trocam o espaço público pelo espaço privado de shoppings e condomínios em seus momentos de lazer.

Esse abandono dos espaços comuns prejudica a vivência urbana e a identidade cultural das cidades. Cada vez mais temos espaços pasteurizados, sem vida, sem aquelas pequenas particularidades que identificam uma determinada população. Essa identificação cultural é fundamental para que as pessoas sintam-se representadas no espaço urbano. Para que sintam-se parte da cidade e se interessem por sua história e preservação.


"A identidade gera o sentimento de pertencimento, a referência que nos orienta enquanto cidadãos. No âmbito urbano, a identidade se reflete nos vínculos que estabelecemos com os espaços da cidade, seus elementos de referência - patrimônio histórico, rios, ruas, praças e parques - que passam a fazer parte constitutiva do nosso cotidiano. "

-Jaime Lerner


Os cidadãos são a peça chave para o bom funcionamento de uma cidade, para a perpetuação de sua história e preservação de seu patrimônio, e as ruas são onde acontece essa conversa entre a cidade e os seus usuários. É no espaço público que sentimos que fazemos parte daquela cidade e ela faz parte de nós. Como arquitetas e urbanistas, pensar essa qualidade espacial e vitalidade dos espaços urbanos é o que nos move. Sonhamos com cidades vivas e saudáveis, que possam abrigar a vida social de forma plena, e para isso nos colocamos como agentes de transformação do meio urbano, pensando e agindo para que a cidade alcance todo seu potencial de abrigo social. Acreditamos que as cidades devem voltar a ser pensadas tendo como foco os seus usuários: as pessoas.



As citações referenciadas no texto, tanto de Jan Gehl quanto de Jaime Lerner, foram retiradas da edição brasileira do livro de Jan Gehl 'Cidades para pessoas', 2013, Editora Perspectiva. A referência à Jane Jacobs diz respeito ao seu livro 'Morte e vida de grandes cidades' (The death and life of great american cities), com edição original de 1961.

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