
Historicamente, o urbanismo foi criado como um campo de conhecimento técnico para dar resposta a problemas da cidade. A revolução industrial trouxe problemas que não existiam antes: a densidade, a poluição, os congestionamentos. Não havia, em seu início, qualquer debate sobre participação; o urbanismo era funcionalista apenas. Seu grande ideólogo, Le Corbusier, dizia que a partir da técnica, resolvia-se qualquer problema das cidades.
"Eles não estão preparados para morar na casa que eu projetei."
Le Corbusier, quando perguntado sobre as críticas que seu projeto de moradia pelos operários que ali moravam
A crítica da cidade funcionalista iniciou-se por volta da década de 60, com debates vindos de fora da arquitetura e do urbanismo, como é o caso dos filmes do cineasta Jacques Tati, e da jornalista Jane Jacobs. A crítica vinha do fato de as pessoas serem deixadas de lado no processo de desenhar a cidade.
No fim dos anos 60, a partir de uma visão marxista, o geógrafo francês Henry Lefébvre faz uma diferenciação entre habitat e habitar. No pós-guerra, a França construiu grandes conjuntos habitacionais nas periferias das suas maiores cidades, para dar conta do déficit gerado pela guerra. Eram conjuntos construídos em terrenos baratos, longe dos serviços essenciais existentes nos centros. Eram, afinal, um habitat, ou seja, o teto. Porém, não davam o direito de habitar e tudo que ele pressupõe: a moradia, a segurança, a mobilidade, os serviços essenciais. Ou seja, o direito à cidade.
Para Lefébvre, o direito à cidade se baseia em dois princípios: o da participação e o da apropriação. O princípio da participação significa tomar parte no processo de construção da cidade. E o da apropriação significa tomar para si os espaços da cidade, fazendo-os parte do cotidiano dos cidadãos.
Na mesma época, no Brasil, os arquitetos se reuniam para discutir a reforma urbana, preocupados com o grande êxodo rural que o país vivia, e as fracas respostas que o urbanismo funcionalista vinha dando aos problemas das cidades brasileiras. Porém, com o golpe militar de 64, essas discussões ficaram latentes até o encaminhamento para o fim da ditadura, quando os grupos de luta pela reforma urbana se rearticulam, juntamente com outras frentes sociais, para pautar as cidades dentro da nova constituição.
Assim, conseguiu-se garantir o direito à cidade através dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, pautado por alguns princípios. O primeiro deles é a participação social, regulamentada através do Estatuto da Cidade. A lei exige a participação social nas tomadas de decisão referentes ao desenvolvimento urbano das cidades brasileiras, seja através de audiências públicas, conselhos, núcleos gestores, etc.
Vemos hoje, porém, que a institucionalização dessa participação tem limites, pois existe hoje uma apropriação dessa participação por aqueles que sempre tiveram o poder das decisões dentro do próprio espaço participativo. Essa limitação deu-se desde o início, através de uma pesada articulação de poderes para que a política urbana brasileira não fosse tratada a nível federal, a exemplo do nosso Sistema Único de Saúde. Com essa articulação, transferiu-se aos municípios o direito de fazer seus planos diretores. O argumento é óbvio: é na cidade que a a democracia se faz. Por outro lado, é na cidade que as elites têm mais força, onde elas conseguem utilizar-se dos instrumentos do Estatuto da Cidade a seu próprio favor.
Para entendermos - e combatermos - isso é preciso reverter a visão do urbanismo funcionalista, que para cada problema vê uma solução. A cidade é o lugar do conflito. É um conjunto de territórios sobrepostos, onde disputa-se o poder.
Estudando-se os planos diretores hoje, a partir de uma leitura social de locais com forte democracia, para haver uma participação de qualidade é necessário vontade política, uma prática participativa por parte da população, e condições institucionais para participação. A vontade política e as condições institucionais foram (ou ao menos deveriam ser) sanadas pela obrigatoriedade imposta pelo Estatuto da Cidade. Porém, a prática participativa por parte da população ainda não é forte.
A esfera pública do debate é a ideia de dialogar sobre os problemas das cidades, primordial para o fortalecimento da democracia e a intensificação da participação social. Para que essa esfera ocorra, deve-se haver abertura por parte do poder público, espaço público adequado e qualificado, e vontade social de se discutir. Só assim construiremos a firme participação e a constante busca pela reforma urbana.
O texto foi produzido a partir das reflexões feitas no evento Conversas Urbanas #6, com o professor Elson Pereira, que aconteceu aqui na URBE em agosto de 2018. Você pode vê-lo na íntegra em nosso canal do Youtube.
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